José Eduardo de Resende Chaves Júnior[1]
Um dos caminhos mais promissores
para que o Judiciário brasileiro possa enfrentar o tsunami de 100 milhões de
processos acaba de ser apresentado na Faculdade de Direito da UFMG e defendido
em dissertação de mestrado em Direito Público, sob a orientação da Professora
Mariah Brochado, intitulada “Remoções Forçadas Decorrentes de Projetos de
Desenvolvimento e o Direito à Moradia Digna”.
Trata-se de uma pesquisa-ação em
que a Juíza Federal Dayse Starling Motta transforma um emaranhado de ações, do
Ministério Público Federal e de uma gama de entidades públicas, para a remoção
das famílias que vivem às margens do chamado Anel Rodoviário de Belo Horizonte,
no inusitado 'Programa Judicial de Conciliação para Remoção e Reassentamento
Humanizados de Famílias do Anel Rodoviário e BR 381'
.
Mesmo com o trânsito em julgado de
várias ações, o conflito vinha se arrastando há vários anos no Judiciário, sem
nenhuma perspectiva de solução. A processualidade estrita não dá conta da
complexidade contemporânea dos litígios.
O grande insight da Juíza
Dayse foi transformar a pletora de processos envolvendo a questão num 'programa
processual', que possui até mesmo logomarca
e é presidido pelo magistrado, inclusive com a designação de um administrador
judicial, por analogia à figura prevista na Lei 11.101/2005. No programa foram
realizadas 259 audiências e firmados 215 acordos. Centenas de famílias
beneficiadas, inclusive com a concessão de aluguel social.
O precursor programa judicial
opera uma interessante torção topológica, tanto nos sujeitos do processo, como
no conflito em si, a ponto de transformar o processo de remoção forçada de
pessoas, que é tradicionalmente violento e traumático, em via de acesso ao
direito fundamental e constitucional de moradia digna para as famílias afetadas
pela desocupação.
Enquanto se trava a acirrada
contenda acadêmica que envolve o chamado ativismo judicial, a caravana
processual da Juíza Dayse evolui de forma pacífica e decisiva, optando pela via
do diálogo social, da colaboração e da interação entre todos os envolvidos.
Os programas processuais se
apresentam como modalidade mais adequada para enfrentamento de conflitos
complexos, seja aqueles fragmentados em milhares de processos repetitivos, seja
aqueles concentrados em grandes lides coletivas.
Duas ideias novas gravitam entorno
da proposta de 'programa processual': a da (i)cooperação judiciária e a de
(ii)constitucionalismo dialógico. Elas próprias inclusive se imbricam.
Comecemos pela última. GARGARELLA
propõe a superação da tradicional doutrina dos checks and balances como
pressuposto à perspectiva para um constitucionalismo dialógico. Sustenta que
MADISON, a quem se atribui o texto do Federalista 51, funda a noção de
freios e contrapesos a partir de uma lógica agonal, de institucionalização
do egoísmo e do conflito.
Em sua proposta GARGARELLA, que
parte de dois constitucionalistas norte-americanos(BICKEL e FRIEDMAN), observa
que a doutrina do conflito que emerge do Federalista 51 não favorece o
diálogo, pois está baseada numa lógica da guerra e da paz armada, muito própria
do período pós-secessão norte-americana
.
Por outro lado, assinala que o
diálogo que a doutrina federalista suscita é um diálogo excludente, um jogo
restrito apenas aos detentores dos poderes constituídos, um arranjo
político-constitucional que exclui o povo, de quem, efetivamente, emana todo
poder. Com ESPINOSA poderíamos assinalar que tal doutrina se circunscreve ao âmbito
de potestas dos representantes e não à esfera de potentia da
multidão de representados.
Nessa linha, que impõe-se a
construção de uma teoria do diálogo processual efetivamente democrático, que
inclua aqueles diretamente afetados.
A segunda perspectiva que informa
os programas processuais é o conceito de cooperação judiciária, que se
entrelaça, mas também se distingue tecnicamente, do princípio processual da
cooperação, previsto no artigo 6º do CPC de 2015.
O CPC de 2015 destina um capítulo
específico ao tema na Parte Geral, intitulado 'Cooperação Nacional' (Livro II,
Título III, Capítulo II) e que é tratado nos artigos 67 a 69. Trata-se de uma
novidade em relação à codificação anterior.
A cooperação judiciária
tradicionalmente era concebida como mero intercâmbio de atos forenses, restrita
aos institutos das cartas – precatórias, de ordem ou rogatórias. Mas o novo
código dá um tratamento muito inovador, inspirado nos mecanismos da cooperação
judiciária da União Europeia, que passam a privilegiar a celeridade, a
informalidade, o diálogo e as novas tecnologias de comunicação e informação.
Na União Europeia o conceito específico de ‘cooperação
judiciária’ se desenvolveu, a partir do Livro Verde da Comissão Europeia, em
2000, procurando levantar os problemas que o demandante transfronteiriço
enfrentava.
A partir daí, veio uma série de normas, dando
concretude à criação do que era chamado, no jargão comunitário de “espaço de
liberdade, segurança e justiça” - doutrina dos pilares superada pelo Tratado de
Lisboa de 2009.
A ideia da cooperação direta entre os poderes
judiciários, sem a intervenção burocrática do executivo e da diplomacia, passou
a ser prevista nos programas de Tampere (1999-2004), Haia (2004-2009) e de
Estocolmo (2010-2014). Atualmente está regulada no Tratado de Funcionamento de União Europeia – TFUE, firmado em
2007 e com vigência a partir de 2009, no art. 81, n. 1 - protocolos n. 21 e 22.
Tal concepção é perfeitamente aplicável à realidade
brasileira, não por colonialismo doutrinário, senão porque nossa realidade é a
de uma grande segmentação judiciária, em cinco ramos e 91 tribunais insulados,
com quase o dobro da extensão territorial da Europa ocidental. Por outro lado,
temos a vantagem de falarmos o mesmo idioma e estarmos submetidos ao mesmo
ordenamento jurídico.
A cooperação judiciária não pode, contudo, ser
enfatizada como um direito solipso e unilateral da parte, tampouco como poder
do juiz. Na cooperação emerge a ideia de uma participação dialógica e ética de
todos os sujeitos do processo. Não só o juiz tem o dever de colaborar, a parte,
por seu turno, tem também o dever de participar de um contraditório interativo.
[1] José
Eduardo de Resende Chaves Júnior, Desembargador do TRT-MG e Magistrado de
Cooperação do mesmo Tribunal. Doutor em Direitos Fundamentais e Professor
Adjunto do IEC-PUCMINAS.
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM http://www.conjur.com.br/2016-set-12/chaves-junior-programas-processuais-despontam-saida-judiciario
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