José
Eduardo de Resende Chaves Júnior1
É
muito importante que também no Brasil seja regularizada a situação
laboral dos motoristas, pois a ingenuidade contábil desses
trabalhadores tem os conduzido a um forte endividamento,
principalmente para a compra de carro zero, sem a menor noção dos
reais custos do trabalho prestado ou dos riscos dessa atividade.
O
Direito do Trabalho atual não sabe lidar com essa nova wikieconomia
e com as externalidades positivas e negativas da rede. Por um lado,
acaba por sufocar as autênticas iniciativas de economia solidária
que as novas tecnologias suscitam, por outro, não tem instrumentos
para reprimir a captura que o neocapitalismo cognitivo é perpetra
contra a colaboração social em rede.
A partir do final do século XX,
as novas tecnologias concebem uma nova forma de organização da
produção, em rede, seja com a empresa pós-material, de serviços,
seja com a Indústria 4.0, que conecta a produção com a internet
das coisas.
Nessa nova economia há um salto
enorme em relação à acumulação flexível do ohnismo da Toyota,
operada a partir dos anos 70. Esse toyotismo marcou, na época,
também uma notável diferença em relação à linha de montagem
fordista, reduzindo a porosidade do trabalho e aumentando
incrivelmente a produtividade.
Não obstante, essa nova
economia em rede tenha enorme potencial de emancipação social e
econômica, através de ferramentas tecnológicas de colaboração
telemática, é também, por outro lado, suscetível de ser cooptada
pelo poder econômico. Alguns denominam esse fenômeno de capitalismo
cognitivo, bio-político ou até de 'uberização' da economia.
Dentro
desse cenário, para efeitos de uma efetiva proteção jurídica do
trabalhador, é preciso repensar conceitos tradicionais do Direito do
Trabalho, principalmente seu conceito-mor de «subordinação
jurídica».
No
início do século XXI esse conceito recebeu
uma update,
com o surgimento jurisprudencial da denominada «subordinação
estrutural-reticular», o que já foi um significativo avanço.
Tal
conceito, contudo, necessita muito mais de um upgrade,
do que de mera atualização,
sob pena de não acompanhar o fenômeno da emergência da inovação
na produção contemporânea. Os conceitos de «alienidade»5
ou mesmo de «dependência econômica»6
parecem mais adequados a essa nova realidade de flexibilidade extrema
da produção.
Independentemente
dessa revisão doutrinária, o motorista habitual do UBER, em tese,
já poderia ser perfeitamente enquadrado como empregado, já que a
empresa dirige totalmente a atividade, porquanto define
o preço do serviço, o padrão de atendimento, a forma de pagamento,
paga e centraliza o acionamento do motorista.
Além
disso, a empresa aplica penalidades àqueles que infringirem suas
normas de conduta, especialmente se o motorista admitir passageiro na
rua, sem o acionamento do aplicativo, se receber gorjetas ou até se
for mal avaliado pelos usuários.
Alguns
especialistas contestam essa visão. Acena-se, em geral, com a
flexibilidade de horário e falta de controle da assiduidade, como
indicativos de trabalho autônomo. Além
disso, alude-se ao fato de que os meios de produção (veículo
e o celular) pertencem ao trabalhador e não à empresa.
Primeiramente,
sublinhe-se que se está a se confundir, nesse caso, mera ferramenta
de trabalho com meio de produção. No caso, o meio de produção é
algoritmo do aplicativo, que é concebido de forma heterônoma e
controlado unicamente pela empresa.
Quanto
à flexibilidade da jornada de trabalho e ao controle da assiduidade,
por outro lado, tais condições não se confundem com o conceito
autêntico de autonomia. No capitalismo cognitivo não é mais
relevante esse controle individualizado, pois somente na linha de
produção fordista é que é essencial a disciplina individual dos
trabalhadores, porquanto na dinâmica linear a falha de um interrompe
todo o circuito produtivo.
Nem mesmo a subordinação
jurídica clássica erigiu a flexibilidade de horário ou a
assiduidade como elementos essenciais à sua configuração, como são
exemplos o trabalho a domicílio, os cargos de gestão e os
realizados em atividade externa, sem controle de horário.
Vale anotar que o trabalho a
domicílio, previsto na CLT desde 1943, é absolutamente incompatível
juridicamente com a ideia de controle de jornada ou de assiduidade,
haja vista a intangibilidade constitucional do lar.
Na
estrutura em rede, a falha individual não é tão determinante, pois
o sistema funciona com uma lógica de equilíbrio similar a vasos
comunicantes. Passa-se da rotina taylorista à flexibilidade virtual.
A própria internet foi criada com essa lógica de supremacia de um
sistema descentralizado e não linear. Para a produtividade da
empresa-rede não é mais relevante a rigidez da jornada ou até
mesmo a assiduidade individuais. A subordinação
passa a ser estruturada de maneira coletiva.
Autonomia,
nesse contexto, só pode estar associada ao fato de o produto do
trabalho resultar em proveito próprio, sem alienação (rectius:
«alienidade»),
tampouco que o trabalhador esteja sujeito a um sistema punitivo, sem
que tenha participado da configuração das regras do negócio. Sem
isso não há contratação autônoma, senão mera adesão
impositiva.
O
aplicativo do UBER está muito distante, ainda, da economia solidária
e da ideia de co-working. O que se percebe é a simples passagem da
cultura da sociedade disciplinária (FOUCAULT) para a sociedade do
controle(DELEUZE). O capitalismo cognitivo tem por objetivo capturar
não apenas o excedente do trabalho individual, mas também o produto
da cooperação social (FUMAGALLI & LUCARELLI)7.
É
importante, pois, que a empresa decida se ajustar aos preceitos dessa
nova economia do compartilhamento ou, então, opte por arregimentar
seus motoristas pelo método tradicional, fruto da civilidade
capitalista, da vinculação empregatícia. O que não se pode
admitir é que continue a explorar o melhor dos dois mundos, violando
tanto os princípios isonômicos da concorrência, como as normas de
proteção ao trabalho humano dirigido.
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1Desembargador
José Eduardo de Resende Chaves Júnior é Presidente da 1a.
Turma do TRT-MG, Doutor em Direitos Fundamentais e Professor Adjunto
da pós-graduação IEC-PUCMINAS.
2Antes
disso, a Comissão do Trabalho do Estado da Califórnia já havia
considerado os motoristas do UBER como empregados e não como
autônomos
http://www.nytimes.com/2015/06/18/business/uber-contests-california-labor-ruling-that-says-drivers-should-be-employees.html?_r=0
3Veja
os detalhes da ação coletiva em http://uberlitigation.com
4Confira
aqui os detalhes do acordo:
http://www.llrlaw.com/wp-content/uploads/2016/04/Breaking-news-Uber-will-pay-100-million-to-settle-independent-contractor-misclassification-claims.pdf
5Indicamos
o texto que escrevemos com o colega Marcus Barberino disponível no
site do TST http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/73990
6Conceito
desenvolvido em tese de doutoramento pelo Professor da UFBA e Juiz
do Trabalho Murilo Oliveira. Resumo disponível em
http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/50179/011_oliveira.pdf?sequence=1
A tese completa disponível em
http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/30176
7Fumagalli,
Andrea and Lucarelli,
Stefano (2007): A
model of Cognitive Capitalism: a preliminary analysis. Published
in: European Journal of Economic and Social Systems , Vol. 20, No. 1
(2007): pp. 117-133.
Disponível em https://mpra.ub.uni-muenchen.de/28012/
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