Ingressamos
na era da crowd economy, da gig economy, de tarefas repetitivas, executadas por
milhões de trabalhadores arregimentados pelas plataformas eletrônicas de
trabalho. Nessa nova economia o trabalho torna-se temporário, precário,
um bico. São micro-tarefas, com micro-remunerações.
É a
intensificação da redução da porosidade do trabalho, pelo aproveitamento de
suas sobras, do tempo 'morto' do trabalhador, que estaria destinado ao lazer, ao
repouso, à reflexão ou mesmo a sua qualificação.
Já parece perceptível
a progressiva substituição das empresas de intermediação de trabalho por
plataformas virtuais, que conectam diretamente o tomador final com o prestador
pessoal do serviço. Esse prestador de
serviço é o detentor das ferramentas de trabalho, é obrigado a assumir os
riscos e custos do negócio, mas não é o proprietário dos meios de produção
digitais - que são o algoritmo e a estrutura de rede.
A
produção econômica na modernidade industrial se destinava à confecção de
mercadorias materiais, no sentido de transformar, linear e diretamente, o
trabalho, material e subordinado, em mercadoria palpável e concreta.
Já
a produção pós-material não se preocupa tanto com a confecção da mercadoria
material, isso porque a automação e a inteligência artificial, a indústria 4.0,
que liga a internet das coisas com o ambiente produtivo, possibilitaram aumentar, e de forma
exponencial, a capacidade de reprodução de bens, o que, logicamente, fez
diminuir o valor desses bens, materiais e reproduzíveis, no mercado.
Nesse
sentido, na contemporaneidade, o trabalho mais estratégico – isto é, aquele que
agrega mais valor à mercadoria ou ao serviço – passa a ser o trabalho que se
destina a produzir não mais bens tangíveis, mas relações, nomeadamente,
relações de conhecimento tecnocientífico, relações de idéias, relações de
informação e comunicação e até relações afetivas.
O
core da organização produtiva das gigantes
da economia digital, tais como Google, Facebook, Amazon, Apple, Ali Baba, Uber,
Didi Chuxing e outras tantas potências eletrônicas, torna-se cada vez mais evanescente.
Capitalismo da emoção. As instâncias da produção e consumo imbricam-se,
confundem-se.
Da Economia da Abundância. Os megadados passam a ser os
recursos mais estratégicos para a produção. Para gerar valor, eles não podem
ser escassos, como na economia tradicional. Os algoritmos de aprendizado de
máquina só funcionam bem com uma base imensa de dados. A abundância passa ditar
a nova ordem econômica do big data produtivo.
Da
lei neoclássica dos rendimentos marginais
decrescentes, a economia da abundância funda uma espécie de
neomarginalismo, a partir do princípio dos rendimentos marginais sempre
crescentes.
A
dicotomia entre software e hardware, que caracterizou a passagem da
era analógica dos átomos para era digital dos bits nos anos 80, sintetizados na diferença dos modelos de negócio
entre IBM e MICROSOFT, dissipa-se na ideia de netware.
As
externalidades de rede passam a ser internalizadas na net economy. Não se distingue mais o trabalho amador do
profissional. A categoria profissional perde sua potência negocial.
Categoria Profissional. Categoria
Profissional é conceito clássico para designar o coletivo produtor das riquezas
no sistema capitalista da grande indústria fordista. Nos termos do artigo 511
da CLT, o conceito de categoria gira em torno da idéia de homogeneidade e de "similitude de
condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum".
Categoria profissional é um conceito construído
a partir de uma noção de identidade, de uma identidade da profissão ou do
trabalho em comum. Nunca foi um conceito ontológico, mas sobretudo sociológico,
que encontrava sua identidade, não na organização espontânea, mas numa
confluência de interesses econômicos, juridicamente regulados.
A identidade profissional, objetiva, tende
a converter-se em diferenças amadoras, subjetivas. Autonomia coletiva
desdobra-se em individualidades capturadas.
A desprofissionalização da categoria
trabalhista é uma tônica das plataformas eletrônicas de trabalho, que passam a
possibilitar a arregimentação da massa, desorganizada juridicamente, de
trabalhadores.
A categoria nesse novo contexto produtivo é
reduzida a ideia de massa. Amassada, disforme, desorganizada. Um engenheiro da
zona sul e um motorista profissional da periferia passam a dirigir veículos
para os mesmos potenciais passageiros.
Se já não é mais possível reconstruir a categoria, é preciso
desmassificá-la. Urge converter o crowdwork
em trabalho da multidão.
'Multidão' como Conceito Político. Nas plataformas de trabalho não há mais categoria
profissional homogênea organizada, com similitude de condições de vida,
identidade e conexidade, nos moldes do art. 511 da CLT, mas apenas o crowdwork, ou seja, a massa heterodoxa
e disforme.
O teórico Jean-Louis Weissberg já falava de 'hipermediação' como
característica básica da nova produção cognitiva, fundada na associação de três
níveis: semiótico, pragmático e político. O produtor-autor coincide com o
consumidor-receptor-leitor. Nesse espaço de produção tecnocultural não se
elimina a figura do autor individual, mas o imbrica, sem dissipá-lo, ao
coletivo.
Há um processo interativo entre a singularidade e um novo operador no
mundo do trabalho que poderíamos denominar de «multidão». A «multidão» é um
conceito ambicioso. É a tentativa de se chegar à democracia absoluta, inclusive
de formulá-la teoricamente.
O conceito contemporâneo de «multidão» parte das formulações do Maquiavel
democrático dos Discorsi e de
Espinosa. É especialmente interessante para nossa análise, pois está fundado em
duas chaves: (i) nas novas formas de trabalho e (ii) na ideia de rede.
Sylvère Lotringer, no prefacio da edição norte-americana de A grammar of the multitude[1] revela que a origem
do conceito «multidão» foi fruto da ‘teoria autonomista’, formulada em vários
lugares, mas que foi efetivamente desenvolvida na Itália dos anos 60 até os 70 [2].
Negri e Hardt, mais contemporaneamente, apresentam a «multidão» como
contrapoder[3] ao «império», que, por sua vez, não se
confunde, no contexto ferramental desses autores, com o conceito de
«imperialismo».
Para Paolo Virno a dicotomia decisiva para a compreensão das características
da esfera pública contemporânea é a operada entre os conceitos
de «multidão» em contraposição ao de «povo». Sustenta Virno que os pais putativos
desses conceitos são, respectivamente, Espinosa e Hobbes.
Nesse sentido, «multidão», na noção espinosiana, indica uma pluralidade
que subsiste no espaço público, a partir da ação coletiva, mas sem dissolver-se
numa unidade monolítica. Hobbes, mira
de forma negativa a «multidão», como um estado natural, caótico, antes de sua
organização como ‘corpo político’ e anterior ao Estado, mas que pode ressurgir
em momentos de tumulto social. Segundo Hobbes, a «multidão» se opõe à
obediência e a pactos duradouros, e que quando os cidadãos se rebelam contra o
Estado se trata da investida da «multidão» contra o «povo».
A ideia de «multidão» - multitudo - a partir da perspectiva da
ciência política, não surgiu propriamente com Espinosa, pois seu pensamento
coincide com o pensamento protestante do Século XVII, que, a seu turno, é
tributário do pensamento renascentista, especialmente de Maquiavel. Em seu Discorsi
- Discursos sobre la primera década de Tito Livio - Maquiavel formula a democracia florentina a
partir dos movimentos que buscam organizar a liberdade na República e
ordenar o trabalho na cidade.
Para Negri (Il Potere Costituente) Maquiavel não é o teórico do Estado
absolutista moderno, senão o pensador da ausência de todas as condições para
uma democracia, ausência, vazio que faz surgir o desejo de um programa
democrático, de um poder constituinte aberto e não ávido para se encerrar numa
Constituição.
Retornando a Espinosa, para ele a multitudo é o sujeito político
por excelencia. Partindo da distinção entre poder (potestas), como
capacidade (de ser afetado) de um governante e potência (potentia), como
força ativa e tornada ato, expressada como a vontade de Deus, uma vontade que
não se distingue e se confunde com o próprio Deus - pura imanência da própria
essência divina - Espinosa situa o império absoluto da democracia como
resultado da potentia imanente da multitudo. Uma potência imanente que até mesmo define o
direito: “Hoc jus, quod multitudinis potentia definitur”.
A Multidão Trabalhadora e sua
«Presentação» Jurídica. A representação não se conecta com o conceito de «multidão». Ao
contrário, pressupõe uma separação, uma identidade ‘segmentada’, e não um
‘seguimento’, um continuum de
singularidades imanentes, um fluxo da «multidão».
A representação opõe o coletivo ao individual, a maioria às minorias, o
público ao privado, o singular ao «comum»[4], enfim, representa por
oposição e disjuntiva, antes que como alternativa. A representação enfatiza a
concepção de hegemonia como domínio excludente, e marca a procura pelos
universalismos autoritários e redutores, os máximos divisores universais, em
lugar dos múltiplos comuns.
Em todas as formas clássicas de representação de Max Weber -
«apropriada» , «livre» ou «vinculada»- não há mais potência, e não é mais, só
uma questão de legitimação, mas, principalmente, de força, de redução efetiva
de potência social dos muitos. «Potentia»
que se reduz a «potestas».
Em resumo, a «presentação» privilegia a «organização» antes que a
representação. Aqui, «organização» entendida como formulada por Edgar Morin –
«ordem-desordem-interação-organização» - ou seja uma organização complexa, uma
nova ordem dos trabalhadores que não exclui o caos sindical, uma organização
essencialmente relacional e de interação, na qual a máxima complexidade da
desordem sindical conterá a ordem, e a extrema complexidade da ordem conterá a
desordem, em sua profunda dialética[5].
Considerações Finais. O conceito de categoria profissional homogênea, com
similitude de condições de vida, prevista pelo artigo 511 da CLT não é a classe
sujeitada ao capital tecnológico. É a multidão
indivisa, codificada, controlada pelo big data produtivo e pelas
tecnologias do algoritmo.
O Direito
Coletivo do Trabalho desafia uma profunda reformulação conceitual do
sindicalismo, que enfatize a solidariedade, com diversidade e liberdade total
para organização.
No marco da
«multidão» é mais operativo falar-se em «organização da presentação» do que da
representação. Aqui, «organização» é entendida como
«ordem-desordem-interação-organização», isto é, como uma organização complexa,
uma nova ordem dos trabalhadores que não exclui o caos sindical, como uma
organização essencialmente relacional e de interação, na qual a máxima
complexidade da desordem sindical conterá a ordem, e a extrema complexidade da
ordem conterá a desordem.
O Conceito
de comum sobrepõe o de coletivo, como o de multidão o de categoria
profissional. Mas é importante buscar as energias de emancipação que o
conceito de multidão esponoseana implica, separando-o bem da ideia de massa, ou
seja, distinguir, mass e crowd de multitude.
Publicado em https://www.conjur.com.br/2019-fev-16/jose-chaves-categoria-profissional-clt-entre-crowd-multitude
A profunda dialética entre ordem e desordem, que é
mais entrelaçada do que se imaginava, nos permite vislumbrar na nova noção de
«organização» a possibilidade de encontrar caminhos para investigar a natureza
das leis. Essa noção se situa no nível do próprio paradigma, no sentido
kuhniano, pois é preciso deixar em suspenso o paradigma lógico no qual ordem e
desordem se excluem MORIN (2002) p. 105.