José
Eduardo de Resende Chaves Júnior1
Paulo
Eduardo Queiroz Gonçalves2
A
Argentina (Decreto de Emergência Pública n. 329/2020)
e
a Espanha (Real
Decreto-ley
9/2020) de uma maneira explícita e direta proibiram a dispensa de
trabalhadores durante a pandemia. Muito embora a legislação de
emergência sanitária brasileira não tenha sido explícita e
abrangente a respeito, detida análise jurídica dessa ordenação de
exceção permite chegar, em termos práticos, muito próximo às
referidas regulações dessas nações ibero-americanas.
Vamos
direto ao ponto: o parágrafo 3° do artigo 3° da Lei 13.979/2020, a
lei federal que trata sobre o enfrentamento da pandemia no território
nacional, dispõe que as faltas ao trabalho decorrentes das medidas
previstas no mesmo artigo serão consideradas justificadas.
As
medidas previstas no mencionado artigo 3°, dentre outras, são as
seguintes: (i) isolamento e (ii) quarentena. Ou seja, os
trabalhadores sujeitos a isolamento e quarentena têm abonadas,
legalmente, suas ausências ao trabalho.
Do
ponto de vista do Direito do Trabalho, as faltas abonadas pelo
legislador são consideradas, tecnicamente, como prorrogação
do contrato de trabalho, em distinção doutrinária ao conceito da
suspensão
contratual.
O
nosso mais autorizado jurista do Direito do Trabalho contemporâneo,
o Ministro Maurício Godinho Delgado, em seu clássico manual,
sedimentou o entendimento de doutrina e jurisprudência, consagrado
há tempos, a respeito da distinção entre prorrogação
e suspensão
do contrato de trabalho, in
verbis:
Suspensão:
características – A figura celetista em exame traduz a sustação
da execução do contrato, em suas diversas cláusulas, permanecendo,
contudo, em vigor o pacto. Corresponde à sustação ampla e
bilateral de efeitos do contrato empregatício, que preserva, porém,
sua vigência. (DELGADO, 2019, p. 1.266)
Já
a prorrogação é definida pelo mesmo autor da seguinte maneira:
A
interrupção é, pois, a sustação restrita e unilateral de efeitos
contratuais, abrangendo essencialmente apenas a prestação
laborativa e disponibilidade obreira perante o empregador. (DELGADO,
2019, p. 1267)
Nesse
sentido, é incontroverso, tanto na doutrina, como na jurisprudência,
que a interrupção
possui natureza unilateral, ou seja, a despeito de suspender a
contrapartida do trabalho humano, não suspende a contraprestação
pecuniária que remunera o trabalhador.
A
literalidade da norma contida no parágrafo 3° do artigo 3° da Lei
13.979/2020 permite concluir que as ausências ao trabalho abonadas
pelo referido período de afastamento configuram, juridicamente,
modalidade de interrupção do contrato de trabalho. Em outras
palavras, essas ausências serão remuneradas.
Além
disso, é importante salientar que o estado jurídico de interrupção
contratual suspende ainda mais um efeito do pacto trabalhista, qual
seja, o de denúncia imotivada do contrato laboral por iniciativa do
empregador, nos termos do artigo 471 da CLT. Ainda que escusado,
lembre-se que esse preceito, ao tratar da suspensão e interrupção
do contrato de trabalho, dispõe que:
"Ao
empregado afastado do emprego, são asseguradas, por ocasião de sua
volta, todas as vantagens que, em sua ausência, tenham sido
atribuídas à categoria a que pertencia na empresa".
Em
consonância à teoria geral do direito, portanto, há um complexo
normativo perfeito (leges
perfectae)
que autoriza a declaração de nulidade do ato de dispensa do
trabalhador, em relação às empresas abrangidas pelos atos de
isolamento e quarentena decretados pelos poderes públicos (federal,
estadual ou municipal).
Diante
disso, resta apenas esclarecer qual é esse rol de trabalhadores
protegidos por tal medida de exceção.
Uma
primeira e apressada análise pode nos levar a concluir que integram
esse conjunto somente aqueles trabalhadores que comporiam, nos termos
da lei, o grupo de “pessoas
suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes”,
além, é claro, do grupo de pessoas efetivamente doentes, as quais
têm seus contratos de trabalho interrompidos
nos primeiros 15 dias e, a partir de então, suspensos,
com a remuneração paga pelo órgão previdenciário.
Atenta
leitura, contudo, do mencionado parágrafo 3° do artigo 3°,
combinado com o artigo 2° da mencionada lei da pandemia, permite
vislumbrar que o rol de tutelados por essa garantia é bem mais
amplo, abrangendo não somente os trabalhadores doentes ou os
suspeitos de contaminação, mas todos
os trabalhadores, desde que trabalhem para empresas atingidas por
restrição ou fechamento decorrente de atos dos poderes públicos.
Como
se vê do multicitado parágrafo 3° do artigo 3° da Lei
13.979/2020, a proteção é estendida não apenas a pessoas, mas, na
literalidade desse dispositivo, a todas medidas nele previstas:
§
3º Será considerado falta justificada ao serviço público ou
à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das
medidas
previstas
neste
artigo.
(grifo
nosso)
Como
se viu, dentre as várias medidas previstas no artigo terceiro estão
as duas principais, (i) isolamento
e (ii) quarentena.
A
quarentena
não é um conceito legal restrito às pessoas com suspeita de
contaminação, mas também abrange as restrições impostas a
empresas, como consta do inciso II do artigo 2° da Lei 13.979/2020:
II
- quarentena: restrição
de atividades
ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que
não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de
transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a
evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.
(grifo
nosso).
Nessa
ordem de ideias, força concluir que não só os trabalhadores
doentes ou que estejam com suspeita de contaminação, mas todos os
empregados, que trabalhem para empresas cujas atividades sofreram
restrição ou fechamento por ato dos poderes públicos, encontram-se
com o contrato de trabalho prorrogado e, por conta disso, amparados
pelo direito de retorno ao trabalho, nos termos do artigo 471 da CLT,
ficando o empregador impedido de exercer o ato de dispensa imotivada.
Da
Medida Provisória 936/2020
A
medida provisória 936/2020, no contexto apresentado pela lei da
pandemia, vem a trazer uma solução de ordem econômica para as
empresas atingidas pelas restrições de suas atividades, incluído o
fechamento temporário, subsidiando integralmente ou em parte sua
folha de pagamento, conciliando os interesses do setor produtivo e
dos empregados na preservação dos postos de trabalho, e dando
concretude aos princípios encampados pela Constituição da
República de preservação da dignidade humana mediante a promoção
do pleno emprego.
Partindo-se,
pois, desse pressuposto, qual seja, de que a norma de ordem econômica
visa a subsidiar uma norma legal de tutela trabalhista, parece mais
do que razoável compatibilizar-se, do ponto de vista jurídico, essa
proteção laboral prevista pelo parágrafo 3° do artigo 3° da Lei
13.979/2020 à medida do Estado de amparo às empresas.
A
MP 936/2020 aperfeiçoa a proteção provisória do emprego durante a
pandemia, porquanto fornece amparo monetário para a viabilização
jurídica da garantia temporária ao trabalhador, e permite a
concretização efetiva das medidas sanitárias de isolamento social,
que do contrário seriam inócuas pela necessidade humana de
viabilização de subsistência, por meio do trabalho.
O
defeito maior da medida, a redução de salário sem a participação
sindical, havia sido parcialmente solucionado pela liminar concedida
pelo Ministro Lewandowiski, na ADI 6363, proposta pelo partido Rede
Solidarieade, que condicionara a validade do acordo individual à
anuência, ainda que tácita, do sindicato profissional.
Infelizmente, o STF não compreendeu a ponderação feita pela
Ministro Lewandowiski e sacramentou uma espécie de quarentena, da
própria Constituição.
O
ajuste mais adequado à garantia do preceito de irredutibilidade
salarial, contido em nossa Carta Magna, seria entender-se que a ajuda
compensatória mensal,
prevista no artigo 9° da MP 936/2020, fosse obrigatória, de modo a
assegurar ao empregado, por meio do somatório do valor despendido
pelo empregador e o benefício emergencial, o valor do salário
originalmente percebido.
Segundo
estudo da Universidade de Oxford, o programa da MP 936/2020 tem o
espírito correto, mas foi mal desenhado, sobretudo para um grande
contingente de trabalhadores que ganha entre 3 e 4 salários mínimos,
que terá uma perda salarial na ordem de 56% (ULYSSEA,
encurtador.com.br/dwy69 )
Não
parece, contudo, que demande maior esforço hermenêutico a
interpretação no sentido da obrigatoriedade do pagamento de tal
ajuda compensatória, sobretudo com o objetivo de se prestigiar a
cláusula pétrea alusiva à irredutibilidade dos rendimentos do
trabalho humano subordinado, pois basta compreender-se o verbo
‘poder’,
contido no mencionado artigo 9° da medida provisória em análise,
não em oposição ao sentido semântico de ‘dever’,
mas como permissivo legal para a não integração à remuneração,
sobretudo para efeitos fiscais e parafiscais.
A
partir de tal leitura, nos parece razoável até mesmo a dispensa da
notificação sindical, pois, em termos de subsistência do
trabalhador, não teria ele reduzidos seus ganhos - no momento tão
dramático para todos como a atual quadra sanitária e econômica que
se nos apresenta.
1José
Eduardo de Resende Chaves Júnior é doutor em direitos
fundamentais, advogado, Desembargador aposentado do TRT-MG,
Professor Adjunto do IEC-PUCMINAS e Professor convidado do Programa
de pós-graduação (mestrado e doutorado) da Faculdade de Direito
da UFMG. Diretor do Instituto de Pesquisa e Estudos Avançados da
Magistratura e do Ministério Público do Trabalho – IPEATRA.
2Paulo
Eduardo Queiroz Gonçalves é magistrado, Titular da da 1a Vara de
Sete Lagoas e especialista em Direito Administrativo pela Faculdade
de Direito da UFMG
Publicado originalmente em:
https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/os-trabalhadores-de-atividades-que-sofreram-restricao-ou-fechamento-por-parte-dos-poderes-publicos-nao-podem-ser-dispensados-durante-a-pandemia/
Publicado também em:
https://estadodedireito.com.br/os-trabalhadores-de-atividades-que-sofreram-restricao-ou-fechamento-por-parte-dos-poderes-publicos-nao-podem-ser-dispensados-durante-a-pandemia/
Nenhum comentário:
Postar um comentário