José Eduardo de Resende Chaves Júnior[1]
«Realidade-virtual» era uma ideia nova. Mas já aparece outra,
a de «realidade-aumentada» (Augmented reality), que faz emergir com
mais força ainda o «hiper-real». A partir dessas noções pretendemos oferecer aqui,
de forma concisa, um conceito, mais operacional para o Direito do Trabalho impactado pelas plataformas
virtuais, o de contrato hiper-realidade.
O conceito clássico de 'contrato-realidade', construído por DE
LA CUEVA, no alvorecer do século passado, a partir de uma decisão da Suprema
Corte do México, como também seu desdobramento principiológico, desenvolvido
por PLÁ RODRIGUEZ, o conhecido princípio da 'primazia da realidade', vêm
sofrendo, de certa forma, uma distorção, na medida em que se sustenta, de forma
descontextualizada, uma suposta a prevalência da realidade efetivada na relação
de emprego, em detrimento de preceitos normativos ou contratuais tuitivos. Contrato-realidade
não é bem isso.
Mario de la Cueva enfatiza a ideia de contrato-realidade,
para contrapor a realidade da prestação do trabalho em detrimento de um acordo
abstrato de vontade. Sua perspectiva era superar o contratualismo estrito,
fundado exclusivamente na vontade das partes e num sentido emancipador da
relação de emprego, ou seja, não como simples disposição sobre a compra-e-venda
da energia humana, senão como uma instituição que procura elevar o homem a um
patamar de existência digna[2].
Na mesma linha, Américo Plá Rodriguez, propôs o princípio da
primazia da realidade como desdobramento do princípio-mater da proteção, não como prevalência factual da realidade, mesmo
porque essa realidade, em essência, é a realidade da prevalência da vontade do
mais forte economicamente.
A apressada - e até literal - compreensão dessas
perspectivas poderia levar à prevalência
de uma condição prejudicial ao trabalhador, em detrimento de uma disposição
contratual benéfica ou mesmo de norma mais favorável. O que nos conduziria, inevitavelmente, a uma
paradoxal colisão entre princípios do Direito do Trabalho.
A essência da ideia de Mario de la Cueva é, pois, a
prevalência da realidade do trabalho sobre as disposições contratuais formais,
não sobre as normas de tuição. Em suma, o conceito de contrato-realidade, muito
embora possa ensejar um aparente paradoxo, nunca prescindiu do caráter contrafático do
Direito do Trabalho, ou seja, nunca dispensou a pressuposto de que os direitos
sociais decorrentes do trabalho se imponham justamente como dever da parte mais
forte, do ponto de vista econômico, na relação jurídica de trabalho.
Com esses cuidados é que se pretende sustentar, aqui, a
prevalência da realidade-virtual sobre a forma tradicional dos atos jurídicos,
no mundo das plataformas tecnológicas de trabalho, de modo a configurar um novo
contrato realidade-digital, que optamos por denominar contrato hiper-realidade.
O decisivo, para se aferir o estrato fático da relação de
trabalho, quando dirigida pelas novas tecnologias de comunicação e informação,
é a realidade que emerge da rede
produtiva, isto é, aquela que aparece do conjunto de fatores que promove a integração
de várias soluções de comunicações, tecnologias de identificação e
rastreamento, redes de sensores e atuadores com e sem fio, protocolos de
comunicação avançadas e inteligência distribuída para objetos inteligentes[3].
A primazia da realidade-virtual, portanto, se dá como um
parâmetro jurídico para dirimir controvérsias que decorram das novas relações
de trabalho, com ênfase na prevalência do sistema, do software, do aplicativo e até mesmo do algoritmo oriundo do poder
diretivo do empreendimento sobre disposições formalizadas. Prevalece a
realidade-digital sobre a forma contratual.
Em outras palavras, na produção pós-industrial, juridicamente
há de predominar o que decorre da gestão oriunda da inteligência artificial e
não o acordo abstrato de vontade. É o determinado pelo programa ou aplicativo
que vigora na prática e é o que decorre dessa realidade-virtual, do
código-fonte, que deve ser considerado como substrato para a incidência do
ordenamento jurídico, não as disposições emanadas da vontade formal das partes.
Code is law é a frase que foi consagrada por
Lawrence Lessig, em seu livro de mesmo nome [4]. Na
perspectiva de LESSIG, o determinante, na sociedade tecnológica da informação
em rede, é o código-fonte dos programas e aplicativos, que rege na prática a
regulação normativa, sobretudo no cyberspace,
pois funciona segundo uma lógica diferente do mundo real[5].
No direito processual norte-americano, já temos desde 2006 a
chamada e-discovery, que é o
procedimento pre-trial de exibição de
provas eletrônicas, previsto na Regra 34 das Federal Rules of Civil Procedure, instituto que foi adotado, tanto
pela Lei do Processo Eletrônico (art. 13 da Lei 11.419/2006), como pelo artigo
440 do CPC de 2015, que viabiliza a incidência prático-processual, no direito
material, do contrato hiper-realidade.
Para BAUDRILLARD, o «hiper-real» é a ultrapassagem do
real, não sua simples representação, sua cópia, senão sua apresentação, traduzida em linguagem binária, em bits. Melhor seria
pensar em termos de transpresentação
do real, em simulação do real, em transposição de suas fronteiras legais,
sintetizados na ideia baudrillardiana de «simulacro»,
porquanto o contrato em si já é uma performance, uma encenação, uma ficção
jurídica.
O contrato imerso no mundo dos
códigos tem sua própria ficção jurídica superada pela inexorável hiper-realidade do meio-ambiente virtual,
comandado pela programação. Não é mais
uma ficção é o hiper-real. O simulacro jurídico hiper-real,
programável, passa, assim, a preceder e
a regular a realidade virtualizada, a cópia copiada, a hiper-ficção jurídica, a precessão do simulacro[6].
Em síntese, será o algoritmo que ditará as regras do negócio (jurídico[7])
e da prestação de trabalho, não as estipulações contratuais formais. Essas
servem, sim, como marco e limite para se aferir eventual supressão de direitos
- contratuais ou legais - daqueles sujeitados ao comando da inteligência
artificial, não como expressão da vontade soberana das partes.
AS PLATAFORMAS DE TRABALHO E A
TERCEIRIZAÇÃO 4.0. A intermediação do trabalho humano vai se modificando
topologicamente, metamorfoseando-se digitalmente; em lugar de uma empresa prestadora
de serviço ou de contrato temporário, entram em cena agenciamentos-nuvens,
arranjos maquínicos de inteligência artificial, plataformas eletrônicas de
trabalho, algoritmos de controle da mão de obra.
Essas
plataformas conectam diretamente o tomador final com o prestador pessoal do
serviço, a quem são transferidos os custos da produção. Os trabalhadores passam
a ser detentores das ferramentas de trabalho, mas continuam despojados dos autênticos
meios de produção digital em rede, que são o algoritmo e a estrutura de rede (cabling).
O trabalho na rede ora se apresenta como força criativa e
conectada à multidão trabalhadora,
que surge como potência (potentia)
originária e destinatária do resultado de seu trabalho, como nos casos de produção
e consumos colaborativos, solidários, em comunhão sinérgica à cooperação social
em rede, ou seja, como multitude.
Mas em seu duplo, o trabalho na rede aparece também como crowd, como mero agenciamento da massa de
manobra, da maioria silenciada. O trabalho mudo, a distância e afastado da
tutela da lei. (confira
aqui nosso artigo do Conjur sobre a Multidão trabalhadora)
Um dos fundadores da nova ciência das redes, o físico
Barabási, demonstra que ao contrário do que o senso comum intuía, os fenômenos
de rede não têm uma concepção democrática. São, na verdade, arranjos
hierárquicos, que tendem à concentração. A web
randômica não é a mensageira do igualitarismo[8].
Já no início dos anos 2000 Barabási previa a concentração da
internet em poucos hubs, como se vê
hoje, com o chamado GAFA (Google, Amazon, Facebook e Apple). A eles vêm se juntar a Uber e a chinesa Didi Chuxing, que adquiriu o controle da 99
brasileira e já é avaliada como a plataforma de trabalho mais valiosa do
mercado mundial, ultrapassando a própria Uber.
O recente relatório elaborado pela OIT, fruto de um trabalho
profundo publicado no final de 2018[9], que
envolveu trabalhadores de plataformas eletrônicas de 75 países, documenta as
condições precárias de trabalho dos chamados crowdworkers.
Esse trabalho
em plataformas digitais consiste basicamente em micro-tarefas, repetitivas,
tediosas, intensivos, turcos mecânicos[10],
mas com micro-pagamentos e até sem pagamentos, porquanto condicionados ao
aceite unilateral e subjetivo do tomador do trabalho (sic!).
Salta-se do outsourcing para o crowdsourcing. A pessoa trabalhadora é reduzida à condição de dado
digital massificado, computado pelo big
data produtivo. Essa nova economia dos dados ultrapassa a sociedade
simbólica, semiúrgica. Hiper-dados transcendem os signos.
A rede dos
dados enreda o trabalho vivo. A
pessoalidade do cidadão trabalhador só tem expressão no uso pelos algoritmos de
aprendizado de máquina dos seus dados sensíveis, íntimos. Consumidor e trabalhador comutados (emulados?)
por códigos binários e bancos de dados.
Nesse cenário
dramático, a sobre-exploração se potencializa e se expande, não se detém nas fronteiras
territoriais, despreza legislações nacionais e tutelas legais. Code is
law, o código-fonte dos aplicativos supera a regulação normativa e se impõe
como lei única do mais forte tecnologicamente.
Passa da hora,
pois, da construção de uma consistente
doutrina jurídica, que dê conta da integração (analógica e digital) do
ordenamento transnacional de tutela do trabalho, que possa fazer face ao imenso
poder (potestas) virtual das
megaplataformas universais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS. A transição de uma economia industrial, material, analógica,
da escassez, para uma economia digital, pós-industrial, da abundância de bits
ainda não nos permite definir os seus contornos finais, mas já possível
vislumbrar suas tendências e perigos, sobretudo no que toca ao âmbito da anomia
regulatória e da concentração econômica.
O trabalho cooperativo em redes digitais tem potencial enorme
de emancipação, mas a realidade demonstra que a tendência é uma arquitetura de
rede hierarquizada, não democrática. É
necessário superar-se a perspectiva do crowdwork
a benefício do multitudework.
Se o contrato-realidade foi um construto jurídico para
ressaltar os limites do contratualismo puro e duro na esfera tuitiva do Direito
do Trabalho, a ideia de contrato hiper-realidade pretende
também desvelar a realidade potencializada na direção algorítmica e atualizada no trabalho concreto,
configurando, assim, uma perspectiva, não propriamente anti-contratualista,
senão pós-contratualista da relação de emprego sob o impacto das novas
tecnologias.
A
adequada regulação do mundo digital do trabalho só é possível a partir do
conhecimento, por parte dos juristas, a respeito da colossal potência de
dominação (potestas), mas também de
emancipação (potentia) que subsiste
na energia de cooperação social em rede. O contrato hiper-realidade, nessa linha, apresenta-se, portanto, como uma
proposta operacional para a estabilização das expectativas contrafáticas do
Direito do Trabalho 4.0.
Publicado em:
http://ostrabalhistas.com.br/contrato-hiper-realidade-e-direito-do-trabalho-4-0/
http://ostrabalhistas.com.br/contrato-hiper-realidade-e-direito-do-trabalho-4-0/
[1] José Eduardo de Resende Chaves Júnior é Doutor
em Direitos Fundamentais. Professor Adjunto dos cursos de pós-graduação do
IEC-PUCMINAS. Desembargador do TRT-MG, Presidente da União Ibero-Americana de
Juízes - UIJ e Diretor de Relações Institucionais do Instituto IDEIA - Direito
e Inteligência Artificial.
[4] LESSIG, Lawrence Code is Law: On liberty in cyberspace -
version 2.0 - New York: Basic Books A Member of the Perseus Books Group,
2006 Disponível em http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf Acesso em 17 FEV 2019
[5] Falchetto Silva anota com propriedade que: "cabe identificar qual é o elemento técnico
estruturador das relações no ciberespaço. A interação dos indivíduos com a rede
se dá por meio do uso de aplicativos, programas de computador, que possibilitam
ao usuário acessar informações, alimentar o sistema e tomar ações
específicas. Note-se que o usuário do
sistema não tem, nesta condição, qualquer controle sobre as regras de
funcionamento do aplicativo. Ele somente pode agir nos limites e formas
preestabelecidos. Assim pergunta-se quem, de fato, detém o poder de definir
tais limites e formas de interação do usuário com o espaço virtual?
Transportando-se tal questionamento para o mundo do trabalho: na hipótese de
oferta de serviços que envolvem trabalho humano, através de plataformas
virtuais, os aplicativos, possui o trabalhador condições de avaliar ou de se
insurgir contra alterações e punições do contrato de trabalho virtual? De quem
seria o ônus da prova de alterações prejudiciais quanto ao seu perfil de
usuário?" FALCHETO SIVLVA (2017, p. 323)
[6] Baudrillard
formula o conceito de simulacro, que é a simulação que não tem mais como base o
real; o real é apenas referencial, uma realidade-virtual. O reality show é um modelo hiper-real, de
simulacro, que se emancipa e se desconecta do compromisso com a realidade. A
simulação – o simulacro – passa a preceder o real. Cfr. BAUDRILLARD, 2003, p.8
[7] Prosseguindo em sua análise, Falchetto Silva registra
que o código-fonte define "a forma
como o espaço virtual, o ciberespaço, é experimentado. É capaz de moldar comportamentos
e regular condutas, criando os instrumentos pelos quais novas relações e
dinâmicas de trabalho serão constituídas, mantidas e finalizadas". FALCHETO SIVLVA (2017, p. 324)
[8] BARABÁSI, 2009, p. 52
[9] BERG, Janine; FURRER, M.; HARMON, E.; RAMI, U. e
SIX SILBERMAN, M. Digital labour platforms and the future of work:
Towards decent work in the online world OIT: Genebra, 2018
[10] Turco mecânico que inspirou o nome da plataforma da Amazon, a Mechanical Turk, foi uma máquina de jogar xadrez
do século XVIII, mas que era na verdade uma ilusão mecânica que permitia a
um jogador de xadrez humano escondido a operar a máquina.
Publicado em:
Nenhum comentário:
Postar um comentário