José Eduardo de Resende Chaves Júnior[1]
Embora sem qualquer estofo
acadêmico ou doutrinário, surgiu no meio empresarial, a tese da "litigância sem risco" (sic!). Segundo seus porta-vozes, essa seria a causa
do execrável demandismo que assombra a Justiça do Trabalho.
Um sistema judiciário não pode
ser, evidentemente, um convite aberto a aventuras processuais, pelo menos por
dois motivos: por um lado, porque onera excessivamente o erário, por outro, por
embaraçar a funcionalidade, prontidão e efetividade do sistema de tutela
judicial.
Mas parece evidente que qualquer
entrave à garantia dos direitos assegurados pelo ordenamento deve ser tratado
juridicamente como exceção, não como regra. Daí que um sistema processual não
pode se fundar, por princípio, no risco. Do contrário, o Estado de exceção
tomaria lugar do Estado da efetividade democrática dos direitos.
Por outro enfoque, o chamado demandismo não parece nem mesmo ser
exclusividade da Justiça do Trabalho, tampouco filhote da tese da "litigância sem risco". Primeiro,
porquanto a justiça comum possui o número estratosférico de 100 milhões de
processos, segundo, porque as estatísticas revelam que mais da metade dos
processos trabalhistas demanda direitos rescisórios básicos.
Se o entrave ao acesso aos
direitos ordinários das pessoas físicas e jurídicas já é ofensivo à ordem
jurídica, o que dizer, então, em relação aos direitos fundamentais do cidadão?
Em recente decisão, de 23 de novembro, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, no caso Petroperú e outros vs. Peru, assentou justamente o caráter indissociável entre o direito fundamental ao
trabalho, previsto no Pacto de San José,
e a garantia efetiva de acesso à
justiça. (Confira aqui a decisão da Corte: http://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_50_17.pdf).
Além disso, no caso Cantos vs. Argentina a Corte IDH assentou no
parágrafo 55: "Este Tribunal estima
que para satisfacer el derecho de acceso a la justicia no basta que en el
respectivo proceso se produzca una decisión judicial definitiva. También se requiere que quienes participan
en el proceso puedan hacerlo sin el temor de verse obligados a pagar sumas
desproporcionadas o excesivas a causa de haber recurrido a los tribunales." Confira
aqui: http://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_48_17.pdf
Cresce, é verdade, um certo populismo
judicial que advoga o direito penal máximo e direito social mínimo. Duas faces
da mesma moeda. Do ponto de vista do Direito do Trabalho, essa perspectiva é
notada, tanto na bagatelização do
trabalho humano, tendo como aspecto mais visível a tarifação dos danos morais,
como na forte repressão à extensão progressiva da interpretação jurisprudencial
dos direitos trabalhistas, progressividade essa que só se concretiza por meio da
provocação judicial por parte dos demandantes.
O direito penal simbólico, aquele
que busca transmitir uma imagem de rigorismo, na prática, tem se provado
ineficaz, por acabar caindo no vazio. Normas com elevado conteúdo emocional e
de corte moralista, são efetivas apenas na manipulação da opinião pública.
Muito marketing de política
judiciária, mas pouca eficácia social. No Brasil, nos últimos 16 anos, não
obstante o aumento de 8 vezes, em termos percentuais, da população carcerária
em relação ao crescimento populacional, segundo o INFOPEN do Ministério da
Justiça, o que se percebe, na realidade, é o incremento da criminalidade e da
sensação de insegurança na sociedade.
Com a reforma trabalhista, decisões
imbuídas de evidente propósito simbólico, para propagar a ideia de rigor e repressão
contra o "demandismo"
trabalhista, fizeram-se notícia em toda a mídia. Penalização máxima do delito
de demandar direitos trabalhistas, seja por articular pedidos em desacordo com
a interpretação pessoal do juiz, seja
pelo fato de o trabalhador não lograr provas suficientes a amparar sua pretensão.
Nesse sentido, o instituto da sucumbência recíproca, da forma com que foi arquitetado na Lei 13.467/2017,
aparece como forma de entrave, se interpretado fora da concepção jurídica do
sistema de acesso à tutela judicial efetiva e justa. É evidente que o conceito
de "litigância sem risco",
sobretudo quando envolve direitos fundamentais decorrentes do trabalho humano,
é absolutamente incompossível com o de acesso à justiça, pelo menos com aquele que
é fruto de toda a construção doutrinária universal. O risco, ao contrário, é
uma noção que funciona justamente como empeço ao acesso.
O enfrentamento às aventuras
processuais, aos abusos de toda ordem, revela-se muito mais adequado e
consentâneo com o direito fundamental de acesso, não por mecanismos generalizantes
de repressão, imputando a todos, culpados e inocentes, os excessos e desvios.
Mais justa e razoável é via contrária, de identificação e penalização dos casos
concretos, de acordo com os preceitos que prescrevem a atuação ética no
processo. Nenhuma pena pode passar da pessoa do ofensor.
Vale observar ainda que a
imposição de entraves econômicos ao acesso, continua a propiciar uma 'litigância sem risco', pelo menos para
os grandes demandados, que habitualmente sonegam direitos trabalhistas e
somente correm o risco de pagar, depois de muitos e muitos anos, o que já
deviam.
Tratar a questão do acesso à
justiça do trabalho pelo operador risco, pressupõe
a confusão entre duas instâncias intrinsecamente distintas, ou seja, significa embaralhar
o risco, inerente à atividade econômica e, como tal, concebido como prêmio e
contrapartida que legitima, no capitalismo, o lucro extraído do trabalho alheio
e a pena, impingida à pessoa humana que labuta e subsiste unicamente de sua
energia fisiológica. Acesso com risco
aos direitos fundamentais do trabalho, essa, sim, a nossa grande jabuticaba
processual.
Texto originalmente publicado, com outro título e algumas modificações, em https://www.conjur.com.br/2017-dez-25/jose-chaves-risco-acessar-justica-trabalho-estado-excecao
[1] José
Eduardo de Resende Chaves Júnior é doutor em Direitos Fundamentais, Professor
Adjunto do IEC-PUCMINAS e Desembargador Presidente da 1a. Turma do TRT-MG
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