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terça-feira, 7 de abril de 2015

Argumentos, Fundamentos e Linguagem: a polêmica sobre a fundamentação analítica no Novo CPC, sob a perspectiva da Análise do Discurso

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José Eduardo de Resende Chaves Júnior2

A 'fundamentação das decisões' e a 'aprovação em concurso público de provas e títulos' são os dois pilares da legitimação técnica do juiz na sociedade. O juiz democrático não pode ser um decisor arbitrário dos direitos dos cidadãos. A fundamentação é uma espécie de prestação de contas ad hoc do juiz do poder que lhe foi conferido pela Constituição. Por isso mesmo, a afirmação de que as sentenças devem ser fundamentadas consiste num colossal truísmo.

Sobre a abordagem do Novo CPC em relação à fundamentação, pedimos licença para alguns rápidos e despretensiosos apontamentos. Iniciamos observando que a fundamentação pode e deve ser perfeitamente examinada à luz da teoria retórica, pois ela também visa à adesão do auditório. Mas na fundamentação, a despeito de lançarmos mão de técnicas argumentativas, já que ela se realiza também pela e na linguagem, a sua finalidade não é a de persuasão, senão a de convicção, tomando de PERELMAN essa distinção entre persuadir e convencer, que, por sua vez, é tomada de KANT, mas em nova acepção.

Para PERELMAN o discurso da persuasão dirige-se a um auditório particular; o da convicção ao auditório universal. Nesse sentido, embora a noção de auditório seja dinâmica e sujeita à estratégia do orador, é razoável afirmar, em linhas gerais, que a intenção precípua das partes no processo é persuadir o juiz, ou seja, as partes se dirigem, pois, ao 'auditório particular' «Estado-juiz». Já o juiz pretende, em geral, convencer, dirigindo-se ao 'auditório universal', já que sua sentença, para ter plena eficácia, não carece propriamente da adesão das partes, senão de um tipo de adesão mais abrangente. O melhor campo para a atuação persuasiva do juiz é na conciliação, não na decisão.

É importante esclarecer que, quanto à convicção do juiz, não visa tampouco a um auditório universal absoluto, mesmo porque a sentença do juiz nacional é dirigida ao caso concreto e a uma sociedade determinada. Mas se considerarmos, de um lado, o imperativo que decorre do fato de que a decisão não se resuma à convicção solipsa do juiz e, de outro, que não deva ela se subordinar aos sujeitos interessados do processo, impõe-se pelo menos a idéia de dirigir-se ao melhor auditório possível, mais racional, menos interessado e parcial e mais amplo, auditório que é desafiado a proceder à adequação de uma questão ideal e abrangente de direito, segundo as circunstâncias concretas do caso.

A partir dessa distinção feita pelo grande pensador polaco radicado na Bélgica, que tirou do limbo a retórica aristotélica, creio, podemos sustentar que, na enunciação de sua convicção, o juiz não está atrelado ao jogo linguístico e ao palavrório da persuasão retórica – processo que é livre e multitudinário. O Juiz, ao enunciar sua convicção, ou seja, ao fundamentar sua decisão, deve, sem dúvida, responder de forma clara, precisa e fundamentada a todas as questões (de fato e de direito) trazidas argumentativamente ao processo, o que não significa que esteja ele jungido ao labirinto comunicacional das partes.

Nesse sentido, não andou bem o Novo CPC ao impor regras de argumentação para a fundamentação da decisão. Nem HABERMAS, o pai da ética do discurso, chegou a tanto. O filósofo alemão, ao refutar a tese de ALEXY de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso moral, esclarece que refoge ao âmbito da legislação processual regulamentar a argumentação jurídica enquanto tal, mas apenas assegurar espaços institucionalizados para ocorrência dos discursos de aplicação do direito, ou seja, a fundamentação da decisão é aferida em função de seu resultado, não em função de seu procedimento retórico-argumentativo.(Capítulo V, item 4 de Direito e democracia: entre facticidade e validade, Vol I).

Não é próprio que a legislação processual se dirija a regrar a argumentação, até porque o argumento, por natureza, não é passível de sofrer contraposição lógica, pois ele é, em última instância, como preleciona FIORIN apenas um simulacro – ainda quando apresentado sob a roupagem de um silogismo – isto é, o argumento é uma imagem que se cria linguisticamente para persuadir o auditório. Em termos figurativos, a narração argumentativa é muito mais uma encenação do que uma confraternização dialógica.

Além disso, o argumento, como expressão da linguagem, não é tampouco a produção de um ato unilateral de comunicação que um emissor envia a um receptor. O linguista francês CHARAUDEAU, um dos mais renomados especialistas da Análise do Discurso, nos explica que além da 'produção' (do argumento) há a contrapartida de 'interpretação' operada pelo sujeito interpretante acerca do conteúdo da mensagem/argumento. Para o estudioso francês, a comunicação é um 'ato interenunciativo' que envolve, no mínimo, não dois, mas quatro sujeitos na comunicação: dois 'Eus' (um que fala e outro que interpreta) e dois 'Tus' (um a quem se dirige a produção da mensagem e o outro a quem se atribui a interpretação operada pelo destinatário). CHARAUDEAU trabalha justamente com a idéia de que aquele a quem se dirige a mensagem não é um receptor passivo de conteúdo, mas um sujeito ativo no ato de fala proveniente do emissor da mensagem.

Não são, pois, os argumentos que devem ser um a um, fragmentariamente respondidos na fundamentação, senão os 'possíveis interpretativos' (CHARAUDEAU) decorrentes dos atos de fala das partes no processo. Traduzindo para o mundo jurídico, o que se conclui é que a fundamentação da sentença deve dar conta, não propriamente dos argumentos, mas, sim, das 'questões de fato e de direito' que decorrerem das alegações argumentativas das partes em litígio.

E é nessa ordem de idéias, portanto, que deve ser compreendido o inciso IV do artigo 489 do NCPC que, aliás, impõe ao juiz o dever de enfrentar todos os “argumentos deduzidos” e não todos os “argumentos” tout court do processoou seja, nem todos os argumentos que forem alegados pelas partes devem ser necessariamente enfrentados, mas apenas as proposições sintéticas que resultarem do processo de dedução jurídica dos 'possíveis interpretativos' que decorrem dessas alegações. 

A Análise do Discurso tem nos revelado o quanto ainda é preciso avançar na teoria da argumentação jurídica, que se mostra muito pobre e diluente na compreensão da complexidade do fenômeno linguageiro. A complexidade da argumentação não se esgota nos campos semântico e sintático, tampouco no lógico. O linguista norte-americano Charles MORRIS demonstrou, desde o início do século passado, que, além dos planos semântico e sintático, as inferências pragmáticas - ou seja, as interpretações que nascem não propriamente do texto, senão do contexto da comunicação - governam qualquer troca comunicativa.

A alta complexidade que envolve essa troca humana de comunicação, decorrente do entrecruzamento dos vários planos da linguagem, pode conduzir o processo judicial a um caos ainda maior – sim, é possível! o fundo do poço ainda não chegou. Para evitar isso, é necessário que os discursos dos antagonistas processuais sejam informados por princípios civilizados de interpretação da linguagem comum.

Nesse passo, mais conveniente do que tentar regrar a argumentação retórica da fundamentação, seria organizar os procedimentos de comunicação interna do processo judicial, considerando os preceitos básicos da linguagem comum. A prática forense, mormente em tempos do 'control c' e 'control v', demonstra que são despejados nos autos, de forma absolutamente caótica e aleatória, centenas de alegações truncadas, verborrágicas, com argumentos tumultuários e desconexos. Na era da abundância da informação, da inteligência coletiva da rede, toda concisão é virtude. O Novo CPC, mais uma vez andou mal, e não é claro a esse respeito, como o é, por exemplo, a legislação processual norte-americana - Federal Rules of Civil Procedure (Regras 8.a.1 e 8.b.1.A)3.

Toda troca comunicacional é informada pelo princípio da cooperação, conforme demonstra o grande filósofo inglês da linguagem Paul GRICE, para quem esse princípio da cooperação linguística se desdobra em várias máximas, tais como: (i)não apresentar mais informação do que a necessária; (ii)não afirmar nada sem prova ou com consciência de que é falso; (iii)restringir-se ao assunto pertinente e (iv)ser claro, conciso e ordenado, evitando-se a ambiguidade.

O Novo CPC trouxe, em boa hora, o paradigma do processo cooperativo (art. 6º), que promove um envolvimento mais ético das partes. A cooperação, portanto, não afeta apenas os atos processuais, mas, sobretudo - como decorre do aporte de GRICE - também os atos de fala de todos os sujeitos no processo. Essa perspectiva linguística, não propriamente retórica, é que deveria ser tomada em consideração, se o que se deseja é enfatizar o viés discursivo do processo judicial.

Não obstante o princípio cooperativo, é importante recordar que a sentença é, também, expressão técnica do exercício do poder, que não pode, naturalmente, ser arbitrária, decisionista, mas não se deve olvidar que ela tem, por outra perspectiva, um viés prático-político indeclinável, que é o de resolver o conflito em sua dimensão jurídica, pela via adjudicada. A realidade dura do foro mostra que os atores do processo preferem o duelo à cooperação. Nesse sentido, sujeitar a fundamentação aos jogos sem fim da linguagem argumentativa, a par de consistir numa utopia ingênua, descumpre a promessa constitucional de efetivação dos direitos em tempo razoável nos cem milhões de processos que tramitam na Justiça brasileira.

1O texto foi aprimorado pelos membros do grupo de estudo sobre o Novo CPC, coordenado pelo Professor e Juiz Ney Maranhão, especialmente pelos Professores Bezerra Leite (UFES) e Adriana Sena (UFMG) e pelo colega Kleber Waki (TRT-GO). Agradeço também à Professora de Linguística da UFMG Janice Helena Marinho.

2Professor dos Cursos de Pós-graduação do IEC PUC-MINAS, Desembargador do Trabalho no TRT-MG e Doutor em Direitos Fundamentais.


3. “Rule 8. General Rules of Pleading
(a) Claim for Relief. A pleading that states a claim for relief must contain:
(1) a short and plain statement of the grounds for the court's jurisdiction, unless the court already has jurisdiction and the claim needs no new jurisdictional support;
(2) a short and plain statement of the claim showing that the pleader is entitled to relief; and
(3) a demand for the relief sought, which may include relief in the alternative or different types of relief.
(b) Defenses; Admissions and Denials.
(1) In General. In responding to a pleading, a party must:
(A) state in short and plain terms its defenses to each claim asserted against it; and (...)”

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