José Eduardo de Resende Chaves Júnior
O
clássico conto do século XIX Bartleby, o escriturário - uma história de Wall
Street, de Melville, o autor de Moby Dick, que para muitos é o
precursor do existencialismo, induz uma triste analogia com o atual exercício
da jurisdição no Brasil.
Bartleby
é um escrevente copista, que trabalha num entediante escritório de advocacia e
se recusa a fazer outras tarefas, que não cópias de documentos, com a misteriosa
frase "preferia não fazer". Bartleby acaba na pura catatonia,
morrendo de fome por inanição, na cadeia. O conto é, segundo Borges, uma das
obras primas da literatura universal, e está sujeito a um sem número de
interpretações.
Cobrado
por sua ineficácia, o juiz brasileiro está se transformando no juiz-Bartleby, o
juiz que ‘prefere não’ repensar seu quefazer diário, optando pela
replicação, pela automatização, pela decisão-cópia e pela jurisprudência
defensiva. Afogado em quase 100 milhões de processos, a produção em série
parece ser a única resposta possível, ao passo que estatísticas dos serviços
médicos dos tribunais revelam um aumento preocupante do número de magistrados
adoecidos pelo stress.
Os
órgãos responsáveis pelo governo do Poder Judiciário brasileiro têm mais do que
simplesmente incentivado, têm exigido dos juízes esse comportamento replicante,
quantitativo, que acaba por reduzir a sentença a um produto serial e os
direitos a mercadoria. Transita-se na pura indistinção entre e cidadania e
mercado.
E o
pior é que nem na orla da produção privada prevalece mais a reprodução. É a
emergência da inovação que agrega mais valor. A produção em série está sujeita,
como se sabe, à clássica lei econômica dos rendimentos decrescentes.
Na
pirotecnia jurídica aparecem críticas teóricas de toda ordem. Chega-se a
transpor da doutrina norte-americana, de forma descontextualizada, o mito do ativismo
judicial, quando na verdade, salta aos olhos que o juiz é cada vez mais
passivo e impotente, diante do avassalador tsunami de microconflitos em
massa que inunda os foros e tribunais.
A doutrina
nacional tem uma colossal lacuna quanto a esses problemas candentes do processo
brasileiro. Tem se dedicado cada vez mais ao principiologismo abstrato,
fingindo que o problema não é com ela, quando a questão é de todo o sistema
de justiça e não apenas do Judiciário, sistema que pressupõe o envolvimento
de todos os atores do processo, quais sejam, Judiciário, advocacia, pública e
privada, ministério público, doutrina, peritos, polícia, ministério e secretarias
de justiça.
Esse
espaço vazio de idéias e ações acaba sendo ocupado pelo puro gerencialismo
processual, decalcado da iniciativa privada, sem qualquer inflexão republicana.
A informatização, por exemplo, é reduzida a mera automatização de atos
forenses, quando, na verdade, o que de mais promissor pode apresentar é a
possibilidade de se construir um processo judicial em rede, beneficiário da
inteligência movente e coletiva da Internet e dos dispositivos sem fio.
Os
autos plugados podem sepultar a tradição, que vem desde o século XIII, com a
medieval Decretal do ano de 1216, que consagrou o princípio da escritura no
processo – quod non est in actis, non est in mundo – princípio que na
prática só faz separar os autos do mundo, alimentando o autismo do sistema e
potencializando a inadequação da insciência do processo praticada no Brasil.
Como nos alerta Castells, em nossa época o mundo real é híbrido, “não um
mundo virtual nem um mundo segregado que separaria a conexão on-line da
interação off-line”.
Mas
é preciso conectar não apenas os autos ao mundo, mas também aproximar os atores
do processo, promover uma interação processual, uma contigüidade dialógica,
para que a gestão do conflito abandone de vez o ranço da perspectiva linear,
segmentaria, vertical, fragmentária, hierárquica, para ensejar uma nova
topologia do processo, mais democrática, participativa, informal, eficaz e,
sobretudo, justa.
Caminhamos
para a pura catatonia judiciária, para o imobilismo processual imposto pelo titânico volume de ações judiciais, sem
precedentes no mundo, pelo bacharelismo gongórico, pela teorética abstrata e
pelo gerencialismo modernoso. No Brasil, a questão não é mais de ‘acesso’ ao
Judiciário, senão de ‘saída’ desse labirinto forense.
O
que será preciso para salvar o Judiciário de si próprio de seus especialistas
de plantão? Gritar, espernear ou só resta desanimar? Até quando será
preciso esperar para o agenciamento de alternativas que efetivamente despertem
a emergência da inovação no mundo jurídico-processual? Os quase 100 milhões de
processo são o atestado da absoluta incompetência de todo o sistema brasileiro
de justiça. A sociedade não suporta mais o ricochete da troca de acusações
entre os atores do sistema: somos todos culpados, sem atenuantes, nem
excludentes. As exceções confirmam a regra.
Texto originalmente publicado no 'Valor Econômico', dia 23/05/2014 no link a seguir link:
http://www.valor.com.br/legislacao/3558836/o-juiz-replicante-que-prefere-nao-mudar
Publicado também no site 'Consultor Jurídico': http://www.conjur.com.br/2014-mai-24/jose-chaves-jr-juiz-brasileiro-opta-replicacao-automatizacao
Publicado também no site 'Consultor Jurídico': http://www.conjur.com.br/2014-mai-24/jose-chaves-jr-juiz-brasileiro-opta-replicacao-automatizacao
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