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sábado, 17 de dezembro de 2011

CNJ PROPÕE MUDAR O CONFLITO PELA COOPERAÇÃO

O CNJ acaba de publicar a Recomendação n. 38/2011, que institui a inovadora Rede Nacional de Cooperação Judiciária. O projeto, da gestão do Ministro Cezar Peluso, foi inicialmente presidido pelo Conselheiro Nelson Tomaz Braga, sendo atualmente dirigido pelo Conselheiro Ney Freitas.

Essa Rede pressupõe alvissareira perspectiva para o Poder Judiciário, que ainda não se adaptou de maneira adequada às demandas da sociedade de massa e atua, praticamente, da mesma forma em que oficiava no Século XIX, quando tínhamos uma sociedade pré-industrial e uma população predominantemente rural,
quase vinte vezes menor e com níveis de conflitos incomparavelmente inferiores.

O modelo tradicional de jurisdição, para lidar com a pulverização de demandas repetitivas, conexas, ou que pressuponham a intersecção de competência de mais de um juiz, tende muitas vezes a potencializar o conflito. É comum verificar-se entre os juízes um fogo cruzado de liminares ou até conflitos de competência; o litígio acaba migrando, de forma paradoxal, dos sujeitos do litígio para aqueles que têm por missão constitucional apaziguá-lo.

O paradigma da cooperação pretende substituir o conflito pela colaboração interna entre os órgãos do Poder Judiciário. Para tanto, a Recomendação n. 38/2011 propõe dois mecanismos muito singelos: (i) a figura do juiz de cooperação e (ii) o núcleo de cooperação judiciária.

JUIZ DE COOPERAÇÃO. O juiz de cooperação tem por tarefa fazer a ligação entre juízes, com objetivo de dar maior fluidez e agilidade aos atos interjurisdicionais. A figura é inspirada na cooperação judiciária no âmbito da União Européia, que tem os chamados ‘ponto de contato’ e o ‘magistrado de enlace’, cujas funções objetivam imprimir maior celeridade aos atos judiciais entre os países membros.

O juiz de cooperação pode ser, até, o embrião do ‘magistrado de enlace’ para o MERCOSUL ou também para a UNASUL. É importante registrar – fato ainda pouco conhecido do mundo jurídico brasileiro - que no território nacional já contamos com u’a magistrada de enlace, que atua com base na embaixada da França em Brasília, pela cooperação judiciária entre Brasil, Bolívia e Venezuela. Qualquer autoridade brasileira, especialmente a judiciária, que tenha, por algum de seus órgãos, pendências no Judiciário francês, pode recorrer aos bons ofícios da juíza francesa.

É importante frisar que o modelo europeu parece muito indicado para adoção no plano interno do Judiciário brasileiro, fundamentalmente por três razões: (i) a extensão continental do território brasileiro; (ii) a concepção federalista da República do Brasil e (iii) a divisão do Poder Judiciário em 5 ramos autônomos, com insuficientes mecanismos de comunicação. Temos no Brasil hoje 91 tribunais-ilhas, com um déficit enorme de integração e comunicação.

O juiz de cooperação deve atuar como facilitador dos atos judiciais que devam ser cumpridos fora da competência territorial, material ou funcional do julgador requerente da cooperação. Além disso, o juiz de cooperação pode figurar também como espécie de mediador de atos concertados entre dois ou mais juízos, o que permite maior fluidez, flexibilidade e harmonia na tramitação de demandas sujeitas a mais de um ramo Judiciário.

Citem-se, como exemplo de ação concertada, estratégias de procedimento deliberadas consensualmente entre o juízo da falência e o trabalhista, para agilização da liquidação de créditos privilegiados e quirografários, ou, ainda, para possibilitar a recuperação de empresas.

Os conflitos de competência entre o juízo da execução, principalmente na Justiça Federal ou na Justiça do Trabalho, e o juízo do registro de imóveis, é também campo promissor para a possibilidade de atuação concertada dos juízos conflitantes, em face da quantidade de conflitos interjurisdicionais que se verificam na prática.

Recorde-se, também, que o paradigma da cooperação teria forte aplicação no encaminhamento das cartas precatórias e dos atos e diligências requeridos pela Justiça Federal à Justiça dos Estados, na forma prescrita pelo artigo 42 da Lei 5.010/66.

Enfim, a Recomendação permite a cooperação para qualquer tipo de ato judicial (numerus apertus) mas exemplifica (art. 4º,§ único) sua admissibilidade para os atos de (i) citação, intimação e notificação, de obtenção e apresentação de provas, de coleta de depoimentos, de medidas cautelares e de antecipação de tutela; (ii) de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas, de facilitação da habilitação de créditos na falência e recuperação judicial, (iii) de transferência de presos; (iv) de reunião de processos repetitivos e (v) de execução de decisões em geral, especialmente aquelas que versem sobre interesse transindividual.  

NÚCLEO DE COOPERAÇÃO. O núcleo de cooperação é, sobretudo, espaço institucional de diálogo entre os juízes para diagnóstico de problemas e características da litigiosidade em cada localidade e, partir daí, presta-se a traçar, coletivamente, uma política judiciária mais adequada à realidade. Será poderoso instrumento para harmonizar, consensualmente, as rotinas e procedimentos.

Tal espaço institucional poderia ser concretizado com reuniões, anuais ou semestrais, entre os juízes do mesmo foro ou tribunal, para discutirem e deliberarem de forma coletiva, eventual harmonização de procedimentos, reunião de processos repetitivos ou ainda para reivindicarem, junto às administrações dos tribunais, aparelhamento ou melhoria na estrutura judiciária.

A gestão judiciária não pode mais ser analisada em segmentação à atividade-fim do juiz. A nova gestão judiciária envolve tanto as atividades-meio, como também os procedimentos e rotinas da secretaria do juízo, além dos próprios atos ordinatórios do processo. Tradicionalmente é reservada ao juiz apenas a função de decidir os conflitos materiais e os microconflitos processuais que se sucedem durante a demanda.

Além disso, em geral, o juiz decide esses conflitos de forma extremamente isolada, peranre um contraditório segmentado, sem interação com as partes, com outros atores processuais ou com os demais órgãos do Poder Judiciário. Na atuação tradicional, a independência judicial acaba se confundindo com a fragmentação dos conflitos e o isolamento do juiz.

A gestão judiciária, normalmente, é delegada aos setores administrativos do Poder Judiciário. E, até na primeira instância, as funções decisórias, ordinatórias e administrativas são também rigidamente separadas. Além disso, o juiz preocupa-se de maneira geral apenas com o processo e não com o conflito social.

Por outro lado, o envolvimento do magistrado com os aspectos ordinatórios do processo, com as rotinas forenses ou com os aspectos administrativos da vara é, na maioria das vezes, envolvimento meramente fiscalista, como corregedor da vara e não como seu gestor.

O que a Recomendação propõe é que não basta que o juiz atue como corregedor da vara, como gestor de processos, é preciso que seja, além disso, gestor de conflitos. Mas é importante frisar que a gestão judiciária tem peculiaridades e não pode confundir-se com outro tipo de gestão.

O Poder Judiciário não deve, evidentemente, desconhecer os anseios sociais por uma justiça eficiente. Ao lidar com recursos públicos, o juiz tem de preocupar-se com a relação custo/benefício do processo, bem assim com a sua eficácia social. Mas, por outro lado, por se tratar de atividade republicana e de Estado, não parece adequado que a preocupação com eficiência se submeta ao modelo economicista e competitivo de mercado, em que impera a estatística e a visão meramente calculista. O mapeamento interno do Poder Judiciário é fundamental, pois é preciso diagnosticar quais são os seus gargalos, para se traçarem as estratégias de combate efetivo das ineficiências do sistema. Só a partir de um trabalho sério de consistência dos dados é possível fazer esse diagnóstico.

As estratégias a serem traçadas, contudo, não podem pautar-se apenas por dados estatísticos, que são muito relevantes, mas não devem ser ferramenta exclusiva, pois é preciso também captar a essência da origem dos conflitos sociais a serem dirimidos pela Justiça, o que, evidentemente, demanda interação coletiva entre os juizes e os demais sujeitos do processo. Nesse sentido, a forma de gestão mais adequada à atividade republicana de jurisdição é o modelo de envolvimento cooperado e participativo do juiz, com transparência, gestão democrática e, sobretudo, coletiva.  

CONCLUSÃO. A Rede Nacional de Cooperação Judiciária, a par de aprimorar a interação entre os órgãos judiciais e aperfeiçoar-lhes a intercomunicação, irá também promover sua integração, consagrando a idéia de que a jurisdição nacional é e deve ser una.

A cooperação judiciária enseja mecanismos simples, sem custos e precipuamente voluntários, de gestão de procedimentos judiciários e de conflitos. A perspectiva da gestão colaborativa, fundada em mecanismos informais entre juízes e os demais atores sociais, além de imprimir maior celeridade e eficácia aos atos forenses, permite que o Judiciário se descole do modelo conflituoso, individualista e fragmentário, em beneficio de uma atuação mais solidária, coletiva e harmônica. Confrontar órgãos judiciais é pura perda de tempo, dinheiro público e energia forense. A função do juiz é pacificar o conflito e não replicá-lo.

Confluir competências, por meio de cooperação, tende a tornar o processo mais rápido, econômico e eficaz. É conhecido o calvário de cumprir ato judicial em outro Estado da Federação, ainda que no mesmo ramo do Judiciário. E, quando implique entrelaçamento de competências materiais, e não apenas territoriais, a coisa se embaralha mais ainda, principalmente quando existe confronto de competência entre os órgãos jurisdicionais.

Se os mecanismos judiciários tradicionais de composição dos conflitos já eram inadequados e ultrapassados, o que dizer-se, agora, com a economia movente, cognitiva e global, com a imbricação virtual dos territórios, a superinteração das redes sociais, a judicialização da política e a hiperemergência das inovações tecnológicas?

O novo paradigma de atuação do juiz, da perspectiva da cooperação judiciária, interfere também na própria concepção tradicional de exercício da jurisdição, que, em princípio, afastava o juiz da gestão administrativa, dividindo e separando, em compartimentos estanques, a atividade-meio da atividade-fim.

A Recomendação n. 38/2011 antecipa a nova tendência da cooperação judiciária já dogmatizada na recente alteração do Código de Processo Civil de Portugal (art. 266) e proposta no novo projeto do CPC brasileiro (arts. 67, 68 e 69 do PLS 166/2010).

Espera-se que, com o desenvolvimento do projeto, os tribunais passem a ter maior grau de comunicação e conexão, interna e externa, possibilitando a agilização, deformalização e maior eficácia dos atos interjurisdicionais. Além disso, espera-se que, com os mecanismos de cooperação judiciária, os magistrados de todas as instâncias passem a ter maior interesse, participação e envolvimento na gestão judiciária.

Enfim, a difusão da cultura da cooperação, em detrimento do fomento do conflito, enseja o background necessário para permitir, não só a harmonização prática de rotinas e procedimentos forenses, mas, sobretudo, para construir a base de um novo processo judicial cooperativo, fundado na boa-fé, e que permita evoluir do mero ativismo judicial, demasiadamente focado no solipsismo do Estado-juiz, para mecanismo contemporâneo de solução de litígios, mais interativo, democrático, eficaz e justo.

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