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domingo, 30 de novembro de 2025

 OLHOS INVERSOS

                                                                                              Pepe Chaves

 

Há dias em que o mundo parece feito de superfícies. Como se tudo estivesse ali, rente à pele, pronto para refletir algo que a gente não sabe bem se é nosso ou se é apenas do brilho do dia.

 Foi num desses dias — um meio-termo entre o cinza e o azul, sem vontade de decidir o que seria — que me vi parado diante de um espelho qualquer.

Não um desses que dão lição de moral em ângulo reto, mas um espelho meio côncavo, meio torto, desses que se encontram por acaso, como se fossem uma brecha no mundo.

Ali, lembrei do poema:

"Olhos nos olhos inversos

Frente em verso-reflexo

Ao avesso das palavras

Verbo sem sons

Voz inefável da luz

Mesmo brilho da íris obscura do espelho

Mar e céu se olham nem se abraçam

Dois infinitos azuis se atravessam"

Seria Pessoa ou um fingidor?

E me ocorreu que talvez o poema estivesse descrevendo o próprio gesto de olhar o espelho — não como quem se reconhece, mas como quem se estranha.

Há algo de profundamente revelador no instante em que o reflexo não devolve o que esperamos. Não é o cabelo desalinhado, nem a olheira que insiste em recordar uma noite mal dormida. É outra coisa: uma sensação de que há alguém ali, atrás da imagem refletida, perguntando silenciosamente quem somos quando ninguém está olhando. Como se o mundo guardasse uma versão nossa só perceptível no intervalo entre o olhar e o pensamento.

A luz daquele dia, filtrada por uma cortina desfiada, iluminava o espelho e fazia com que minha própria imagem ganhasse um brilho que não reconheci. Uma voz sem som — talvez a mesma mencionada no poema — me atravessou. Não disse nada, mas eu entendi. Há mensagens que não se ouvem; apenas acontecem.

Em algum momento, o espelho deixou de refletir exatamente o que estava diante dele. Começou a mostrar o que estava por trás. Não atrás de mim — atrás de mim também havia apenas uma parede branca e a rotina suspensa —, mas atrás da imagem que carrego de mim mesmo.

Foi quando percebi que, assim como o poema escreve, “verbo sem sons” pulsam dentro de cada gesto. A vida, afinal, raramente pronuncia suas intenções. Só as insinua.

Lembrei então do mar. Não que eu estivesse perto dele — longe disso —, mas algumas memórias se comportam como ondas teimosas: vêm mesmo quando ninguém as chama. O mar e o céu, quando se olham, parecem compor um único corpo azul, embora não se toquem.

Dois infinitos que se reconhecem sem se encontrar em Pessoa.

Essa imagem sempre me pareceu injusta. Por que duas grandezas tão vastas — tão destinadas uma à outra — jamais se abraçam? O horizonte é uma promessa que nunca se cumpre.

E, ainda assim, é bonito. Talvez porque algumas distâncias só existam para que a gente se lembre de que nem tudo precisa se completar para ser inteiro.

Pensei nisso olhando o reflexo: eu e a imagem éramos também dois azuis separados por um limite impossível de atravessar. Eu cá, tentando decifrar quem sou. A imagem lá, me observando de volta com uma paciência que só os reflexos têm.

O avesso das palavras do poema começou a fazer sentido. Há pensamentos que só sobrevivem no silêncio. Há percepções que só se revelam quando desistimos de nomeá-las.

O espelho, naquele instante, não era um objeto. Era uma espécie de fronteira — não entre mim e o mundo, mas entre o que sei e o que sinto. O que vejo e o que pressinto. Como se estivesse me oferecendo uma travessia que não passa por passos, mas por entrega.

O poema termina dizendo: "Dois infinitos azuis se atravessam". E fiquei pensando no que isso significa. O mar atravessa o céu? O céu atravessa o mar? Ou ambos apenas se deixam ser atravessados pelo olhar de quem contempla?

Talvez seja isso: infinitos só se encontram quando alguém os testemunha.

E percebi, voltando a mim, que o espelho — aquele pequeno e despretensioso retângulo pendurado na parede — era meu horizonte do dia. Meu mar e meu céu. Não porque revelasse algo grandioso, mas porque me oferecia a chance de ser espectador de mim mesmo, com a mesma delicadeza com que às vezes observamos um pôr do sol.

Fechei os olhos por um instante. Ao abri-los, havia a mesma imagem, mas já não era a mesma Pessoa. Alguma coisa muda quando conseguimos olhar para nós como se fôssemos outro. Não um estranho — apenas um reflexo inverso, um verso nos olhos.

No fim, saí de frente do espelho. A luz continuava ali. O dia, ainda indeciso. E eu carregava a sensação de ter atravessado — ou sido atravessada por — um desses azuis que se estendem além do que conseguimos tocar.

A crônica termina aqui, mas o horizonte, esse, segue ali onde sempre esteve: no exato lugar em que duas superfícies se olham, sabendo que nunca se abraçarão — e mesmo assim, insistem em permanecer diante uma da outra. Eu deveria me chamar Perplexo em Pessoa. Finjo, nem minto.  A luz que ilumina, no espelho ofusca.  Só funciona na caverna.

 

 

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