OLHOS INVERSOS
Há dias em que o mundo parece feito de superfícies. Como se
tudo estivesse ali, rente à pele, pronto para refletir algo que a gente não
sabe bem se é nosso ou se é apenas do brilho do dia.
Foi num desses dias —
um meio-termo entre o cinza e o azul, sem vontade de decidir o que seria — que
me vi parado diante de um espelho qualquer.
Não um desses que dão lição de moral em ângulo reto, mas um
espelho meio côncavo, meio torto, desses que se encontram por acaso, como se
fossem uma brecha no mundo.
Ali, lembrei do poema:
"Olhos nos olhos inversos
Frente em verso-reflexo
Ao avesso das palavras
Verbo sem sons
Voz inefável da luz
Mesmo brilho da íris obscura do
espelho
Mar e céu se olham nem se
abraçam
Dois infinitos azuis se
atravessam"
Seria Pessoa ou um fingidor?
E me ocorreu que talvez o poema estivesse descrevendo o
próprio gesto de olhar o espelho — não como quem se reconhece, mas como quem se
estranha.
Há algo de profundamente revelador no instante em que o
reflexo não devolve o que esperamos. Não é o cabelo desalinhado, nem a olheira
que insiste em recordar uma noite mal dormida. É outra coisa: uma sensação de
que há alguém ali, atrás da imagem refletida, perguntando silenciosamente quem
somos quando ninguém está olhando. Como se o mundo guardasse uma versão nossa
só perceptível no intervalo entre o olhar e o pensamento.
A luz daquele dia, filtrada por uma cortina desfiada,
iluminava o espelho e fazia com que minha própria imagem ganhasse um brilho que
não reconheci. Uma voz sem som — talvez a mesma mencionada no poema — me
atravessou. Não disse nada, mas eu entendi. Há mensagens que não se ouvem;
apenas acontecem.
Em algum momento, o espelho deixou de refletir exatamente o
que estava diante dele. Começou a mostrar o que estava por trás. Não atrás de
mim — atrás de mim também havia apenas uma parede branca e a rotina suspensa —,
mas atrás da imagem que carrego de mim mesmo.
Foi quando percebi que, assim como o poema escreve, “verbo
sem sons” pulsam dentro de cada gesto. A vida, afinal, raramente pronuncia
suas intenções. Só as insinua.
Lembrei então do mar. Não que eu estivesse perto dele —
longe disso —, mas algumas memórias se comportam como ondas teimosas: vêm mesmo
quando ninguém as chama. O mar e o céu, quando se olham, parecem compor um
único corpo azul, embora não se toquem.
Dois infinitos que se reconhecem sem se encontrar em Pessoa.
Essa imagem sempre me pareceu injusta. Por que duas
grandezas tão vastas — tão destinadas uma à outra — jamais se abraçam? O
horizonte é uma promessa que nunca se cumpre.
E, ainda assim, é bonito. Talvez porque algumas distâncias
só existam para que a gente se lembre de que nem tudo precisa se completar para
ser inteiro.
Pensei nisso olhando o reflexo: eu e a imagem éramos também
dois azuis separados por um limite impossível de atravessar. Eu cá, tentando
decifrar quem sou. A imagem lá, me observando de volta com uma paciência que só
os reflexos têm.
O avesso das palavras do poema começou a fazer sentido. Há
pensamentos que só sobrevivem no silêncio. Há percepções que só se revelam
quando desistimos de nomeá-las.
O espelho, naquele instante, não era um objeto. Era uma
espécie de fronteira — não entre mim e o mundo, mas entre o que sei e o que
sinto. O que vejo e o que pressinto. Como se estivesse me oferecendo uma
travessia que não passa por passos, mas por entrega.
O poema termina dizendo: "Dois infinitos azuis se
atravessam". E fiquei pensando no que isso significa. O mar atravessa
o céu? O céu atravessa o mar? Ou ambos apenas se deixam ser atravessados pelo
olhar de quem contempla?
Talvez seja isso: infinitos só se encontram quando alguém os
testemunha.
E percebi, voltando a mim, que o espelho — aquele pequeno e
despretensioso retângulo pendurado na parede — era meu horizonte do dia. Meu
mar e meu céu. Não porque revelasse algo grandioso, mas porque me oferecia a
chance de ser espectador de mim mesmo, com a mesma delicadeza com que às vezes
observamos um pôr do sol.
Fechei os olhos por um instante. Ao abri-los, havia a mesma
imagem, mas já não era a mesma Pessoa. Alguma coisa muda quando conseguimos
olhar para nós como se fôssemos outro. Não um estranho — apenas um reflexo
inverso, um verso nos olhos.
No fim, saí de frente do espelho. A luz continuava ali. O
dia, ainda indeciso. E eu carregava a sensação de ter atravessado — ou sido
atravessada por — um desses azuis que se estendem além do que conseguimos
tocar.
A crônica termina aqui, mas o horizonte, esse, segue ali onde
sempre esteve: no exato lugar em que duas superfícies se olham, sabendo que
nunca se abraçarão — e mesmo assim, insistem em permanecer diante uma da outra.
Eu deveria me chamar Perplexo em Pessoa. Finjo,
nem minto. A luz que ilumina, no espelho ofusca. Só funciona na caverna.
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